Investir em gasoduto argentino não faz sentido econômico e ambiental, dizem especialistas
O projeto envolvendo a reserva argentina rica em gás de xisto de Vaca Muerta, apesar dos elogios feitos pelo governo brasileiro em sua visita ao país vizinho, não é considerado econômica e ambientalmente viáveis para a realidade brasileira, segundo especialistas do setor do lado de cá da fronteira.
A declaração conjunta assinada por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e pelo presidente argentino Alberto Fernández qualifica o projeto, incluindo o gasoduto Néstor Kirchner, que atravessa a Argentina e inclui ligação com a divisa do Brasil, como uma prioridade binacional.
Lula declarou que haverá urgência em garantir financiamento brasileiro ao projeto. As obras da primeira etapa ainda estão em curso. A licitação da segunda fase deve ocorrer até abril. O gasoduto já recebeu 180 bilhões de pesos em investimento, quase R$ 5 bilhões, e a demanda por capital é crescente. Neste ano, vai demandar 300 bilhões de pesos, cerca de R$ 8,2 bilhões.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que o investimento brasileiro se justifica porque o produto, quando chegar ao Brasil, vai beneficiar a indústria brasileira, inclusive a produção de fertilizantes.
Ainda que as intenções políticas sejam positivas dentro da diplomacia regional, as questões de ordem mais técnica, segundo os especialistas em energia, não asseguram que o Brasil possa ter retornos concretos com o financiamento do projeto. Não há nem garantia de que o gás possa chegar até aqui, explica Rivaldo Moreira Neto, sócio da Gas Energy, consultoria especializada na área para América Latina.
Na Argentina, o gás é um combustível muito mais relevante do que no Brasil. Conta com um mercado amplo e estruturado e com uma rede de gasodutos extensa e densa. O gás abastece indústria e famílias, não apenas na geração de energia elétrica, mas também sustenta a calefação das residências no inverno.
No entanto, o país precisa importar o produto, principalmente para atender a forte demanda quando a temperatura cai abaixo de zero. Nos meses mais frios, muitas indústrias ficam sem o produto e precisam queimar diesel, mais caro e poluente, por causa dessa deficiência na oferta.
O último ano foi especialmente penoso por causa dessa dependência internacional, pois a guerra da Rússia na Ucrânia afetou a oferta global e pressionou os preços, contribuindo para agravar a crise financeira interna da Argentina. Teve gente sem dinheiro para se aquecer.
O gasoduto Néstor Kirchner é vital porque vai transportar o gás da província de Neuquén até San Jerónimo, na região de Buenos Aires, que concentra o consumo, atravessando mais de 1.400 quilômetros, incluindo a instalação de ramais e plantas compressoras pelo meio do caminho. As saídas para uma eventual exportação estão mais ao norte.
Sendo assim, produção local de uma reserva como a de Vaca Muerta é, antes de qualquer outra discussão, a promessa de autossuficiência de gás a baixo custo para o mercado interno argentino. O governo, inclusive, controla o preço na boca do poço, fator que até dificultou a atração de investidores.
“Essencialmente, todo o projeto de Vaca Muerta é voltado à Argentina, e busca atender a necessidade do país, que é muito deficitário”, diz Moreira Neto. “A gente ainda não sabe nem o volume, nem em quanto tempo o país vai conseguir exportar esse gás.”
Na já distante oferta para o mercado externo, o Brasil está em desvantagem na fila. O cliente preferencial é o Chile. Outro importante consumidor de gás, ele já construiu uma estrutura de gasodutos para receber o produto argentino, e boa parte dos canos ficam inclusive vazios.
Até já existe um sistema inicial conectando a Argentina à térmica de Uruguaiana no Rio Grande do Sul, por causa de um projeto anterior, que não se concretizou. Apesar de os governos dos dois países falarem há anos dessa integração pelo gás, o fato é que a Argentina não conseguiu fornecer o produto.
O projeto de levar o gás de Uruguaiana a Porto Alegre está igualmente paralisado, pois exige a construção de um duto de 600 km. O plano de expansão da malha brasileira de gasodutos, divulgado em 2019 e que nunca saiu do papel, previa na época investimento de R$ 4,6 bilhões.
A ambição de levar o gás argentino para o Sudeste é mais distante ainda, pois essa região do Brasil pode ser abastecida pelo gás do pré-sal, que está na costa do Brasil.
“O Brasil precisa de mais competição no gás. Qualquer outra oferta que se prove competitiva pode ajudar a recuperação da indústria nacional”, afirma Paulo Pedrosa, presidente da Abrace (Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres).
“Mas nossa grande oportunidade está no gás do pré-sal, que estamos reinjetando em gigantescas quantidades.”
Apesar de o tema ter sido amplamente discutido durante o governo anterior e ter sido sancionada uma lei para abrir o mercado, o fato é que as transações são lentas e a construção da infraestrutura para aproveitar o pré-sal ainda não decolou. No entanto, o transporte do produto via dutos faz parte do custo final, e quanto mais próximo do mercado consumidor, mais barato, o que dá vantagem ao produto local e nacional.
“O gás de Vaca Muerta pode ser muito barato”, diz Luiz Augusto Barroso, diretor-presidente da PSR, consultoria da área de energia. “Mas há também o gás do pré-sal e o gás boliviano, e a opção vai depender da competitividade pelo custo da entrega.”
O produto argentino perde muitos pontos quando se avalia a questão ambiental.
“Gás ou petróleo de xisto são as piores escolhas em qualquer lugar do mundo”, diz o físico Shigueo Watanabe Júnior, especialista em mudanças climáticas e energia. Ele não é uma entusiasta de nenhum gás, porque todos pioram as emissões, mas produtos como o de Vaca Muerta, em comparação, são mais prejudiciais que o do pré-sal, por exemplo. A emissão de metano é alta.
O xisto argiloso é um tipo de rocha sedimentar, e para separar o petróleo ou o gás dessa estrutura é preciso aplicar água com uma alta pressão. Além desse gasto elevado de água, a pressão em si afeta o solo de diferentes maneiras.
Watanabe conta que na própria Argentina a exploração prejudicou comunidades indígenas. Na exploração de xisto nos Estados Unidos, há registro de contaminação de lençóis freáticos e abalo na estrutura até de casas próximas às áreas de extração. Na China, há estudos mostrando que a pressão em locais de exploração de xisto levou a abalos sísmicos.
“O Brasil tem reservas de xisto”, diz Watanabe. “No Paraná, uma mobilização impediu a extração. Espero que as reservas no Maranhão e no Piauí nunca sejam cogitadas.”
Por ora, no entanto, nada foi definido de concreto em relação ao projeto argentino. A assessoria de imprensa do BNDES informou, por meio de nota, que ainda aguarda detalhes sobre as propostas.
“As falas do presidente Lula são muito bem-vindas e valorizam o BNDES”, afirmou o texto da nota. “A nova diretoria do Banco vai aguardar o retorno da delegação brasileira para obter mais informações sobre parcerias, encaminhamentos e eventuais participações em projetos.”
Com pessoas próximas ao banco, a Folha apurou que não existem pedidos formais de crédito para projetos associados à Vaca Muerta ou seu gasoduto. Internamente, não há perspectiva de que o banco volte a trabalhar com financiamentos a obras no exterior. O BNDES suspendeu essa modalidade. A perspectiva é que ocorram financiamentos de equipamentos para obras no exterior, que buscam fomentar a indústria brasileira no mercado interno.
O crédito poderá ser fornecido à empresa no Brasil ou a governo no exterior para a aquisição dos produtos, a depender de análise do projeto e do parceiro.
O financiamento do BNDES a obras no exterior, inclusive a concessão de equipamentos, foi questionado e se tornou alvos de investigações. Segundo fontes do banco, o processo de apoio a projetos de exportação tende a ser mais minucioso.
Alexa Salomão / Folha de São Paulo Foto: Agustin Marcarian/Reuters / Por politicalivre